Como Envolver Comunidades Guarani em Projetos da Captação de Recursos
- Michele Duarte Vieira
- 31 de jul.
- 5 min de leitura
A captação de recursos, quando pensada a partir das realidades e cosmovisões indígenas, precisa ir muito além de modelos prontos e fórmulas ocidentais. No caso das comunidades Guarani, o planejamento de qualquer ação, incluindo a busca por recursos, deve nascer do diálogo respeitoso, da escuta profunda e da valorização dos modos próprios de organização social e espiritual. Mais do que “levar projetos”, o verdadeiro desafio é cocriar, desde o início, estratégias que respeitem e fortaleçam o que já existe: as lideranças tradicionais, os conselhos de anciões, os rituais de decisão coletiva e os vínculos com a terra.
Esse processo exige uma mudança de postura por parte de apoiadores externos, ONGs, pesquisadores ou mesmo lideranças indígenas jovens em formação: sair da lógica de “oferta de soluções” e entrar num território onde o tempo, a palavra e o sonho guiam os movimentos.
A seguir, vamos explorar um caminho viável, respeitoso e colaborativo para envolver comunidades Guarani na construção coletiva de estratégias de captação de recursos que estejam alinhadas com seus valores, práticas e necessidades reais.

O que significa “captação de recursos” no contexto das comunidades Guarani?
Antes de pensar em editais, plataformas ou ferramentas digitais, é necessário ressignificar a própria ideia de recurso. Para os Guarani, teko porã (vida plena e harmonia) é o princípio que orienta todas as ações coletivas. Assim, “recursos” não são apenas financeiros, eles podem ser sementes crioulas, tempo comunitário, sabedoria ancestral, apoio espiritual, alianças entre parentes e parceiros não indígenas confiáveis.
Portanto, captação, nesse contexto, precisa ser entendida como um processo de fortalecimento da autonomia comunitária, da segurança territorial e alimentar, da continuidade das práticas espirituais e da proteção das futuras gerações.
Alinhando intenções: o início é sempre a escuta
Antes de propor qualquer planejamento, é essencial ouvir profundamente. Essa escuta deve ser sem pressa, com humildade e disponibilidade para aprender. Reuniões formais não são, necessariamente, o melhor caminho. A construção de vínculos se dá nos mutirões, nas rodas de chimarrão, nos rituais de canto, na convivência diária.
Passo 1 – Realizar escutas comunitárias com respeito ao tempo Guarani
Agende rodas de conversa com a comunidade, mas aceite que o tempo da fala não segue cronogramas ocidentais;
Permita que os temas surjam organicamente: um canto pode abrir caminhos mais profundos que um questionário;
Respeite a autoridade das lideranças espirituais (mboruvixa) e das mulheres mais velhas. Elas são guardiãs dos caminhos;
Não leve pressa nem expectativa de resposta imediata. A escuta é semente, não colheita.
Identificar os sonhos coletivos, não só os problemas
Uma armadilha comum de quem chega para “ajudar” é perguntar diretamente “qual o problema?”. Para os Guarani, o que mobiliza a ação não é a dor, mas o sonho compartilhado, a busca por fortalecer o teko porã. Ouvir quais são os sonhos coletivos permite entender o que de fato é prioridade para a comunidade.
Passo 2 – Facilitar rodas sobre sonhos e futuros desejados
Proponha momentos em que crianças, jovens, adultos e anciões possam compartilhar visões do futuro da aldeia;
Utilize recursos visuais (como mapas, desenhos, símbolos) para expressar ideias de forma não verbal;
Identifique pontos em comum: segurança territorial? fortalecimento da língua? reflorestamento? artesanato?;
Registre com sensibilidade, mas sempre com autorização.
Traduzir os sonhos em necessidades concretas
Após o compartilhamento dos sonhos, o próximo passo é coletivamente transformá-los em demandas possíveis de serem apresentadas em editais, chamadas públicas ou ações de financiamento coletivo. Mas atenção: essa tradução precisa manter viva a essência do que foi sonhado.
Passo 3 – Coescrever as necessidades com a comunidade
Evite usar jargões técnicos. Busque formas de redigir os projetos com base nas falas reais das lideranças e jovens;
Deixe que a comunidade revise, discuta e reescreva trechos. O texto deve pertencer à aldeia, não à ONG;
Evite “enquadrar” o sonho Guarani em categorias externas. Em vez disso, busque editais que acolham a proposta como ela é;
Registre também os recursos não financeiros já disponíveis, valorizando saberes, espaços e tradições.
Escolher juntos os caminhos de captação
Há muitas formas de captar recursos: desde grandes editais públicos e internacionais até vaquinhas solidárias, feiras culturais, venda de artesanato ou doações recorrentes. A escolha do caminho precisa considerar a autonomia comunitária, o tempo disponível, as formas de comunicação e, sobretudo, a proteção espiritual dos processos.
Passo 4 – Apresentar as possibilidades e decidir coletivamente
Explique as diferenças entre um edital público, uma campanha online ou uma parceria com instituição;
Dialogue sobre os riscos e contrapartidas: o que se espera da comunidade em cada modelo?;
Respeite a decisão comunitária, mesmo que ela pareça “menos eficiente” aos olhos externos;
Garanta que os recursos captados possam ser geridos da forma tradicional, com a participação dos anciãos.
Construir uma governança interna respeitando a organização Guarani
Captação de recursos sem governança interna pode gerar conflitos, disputas e rupturas espirituais. Os Guarani já têm formas legítimas de decidir, distribuir tarefas e cuidar do coletivo. O desafio está em integrar essas formas aos requisitos de prestação de contas de instituições externas.
Passo 5 – Criar coletivamente um plano de gestão comunitária dos recursos
Fortaleça conselhos comunitários mistos, com presença de lideranças espirituais, mulheres, jovens e anciões;
Estimule a formação de jovens para a gestão financeira e escrita de relatórios, sem romper com os mais velhos;
Respeite o modo de circular os recursos: muitas vezes o coletivo vem antes da conta bancária individual;
Inclua momentos de avaliação espiritual dos projetos, não apenas indicadores técnicos.
Registrar com beleza e verdade: os relatórios também são memória
Grande parte dos financiadores exige registros e relatórios. Isso pode ser uma barreira se for imposto em formatos padronizados. Uma alternativa legítima é cocriar, com os Guarani, formas próprias de registrar os processos: vídeos com cantos, narrativas orais, desenhos das crianças, relatos em guarani com tradução.
Passo 6 – Cocriar formatos de registro culturalmente sensíveis
Use a própria língua Guarani nos materiais sempre que possível;
Valorize o registro visual: fotos feitas pela comunidade, mapas vivos, diários de campo desenhados;
Evite transformar o processo em “tarefa escolar”. Cada registro é uma forma de celebrar o caminho;
Envie os relatórios com explicações que contextualizem o modo Guarani de trabalhar o tempo e o resultado.
Fortalecer vínculos, não dependências
Todo projeto tem começo, meio e fim. O mais importante é que o processo deixe algo vivo: autonomia, aprendizado, vínculos mais fortes. A captação de recursos, quando feita com respeito, deve fortalecer a comunidade para que ela mesma conduza seus futuros, sem depender eternamente de apoio externo.
Passo 7 – Encerrar ciclos com rituais de agradecimento e avaliação coletiva
Ao final de cada projeto, retorne à aldeia para uma roda de avaliação, onde todos possam falar;
Permita que as críticas surjam: são aprendizados legítimos;
Proponha um momento ritualístico de agradecimento: um canto, um mbaraká, uma dança de encerramento;
Registre os aprendizados como sementes para os próximos projetos.
Cuidados éticos e espirituais durante todo o processo
A relação com comunidades Guarani não é apenas técnica, mas espiritual. É necessário ter consciência das potências invisíveis que regem o território e os sonhos coletivos. Entrar numa aldeia, propor uma ação, captar recursos: tudo isso mexe com o campo energético e ancestral. Por isso, a proteção espiritual e o respeito são pilares.
Peça permissão antes de entrar em território sagrado;
Participe dos rituais se for convidado, mas sem curiosidade ou exotismo;
Jamais use imagens, cantos ou nomes de anciãos em campanhas sem consentimento explícito;
Reconheça que nem tudo pode ou deve ser traduzido para o “projeto”.
Quando o recurso vira raiz
Mais do que alcançar metas, o sucesso de um processo de captação junto aos Guarani está em fazer com que o recurso se torne raiz: que alimente a terra, fortaleça a língua, proteja os sonhos dos pequenos e honre a sabedoria dos antigos. Quando a comunidade sente que foi ouvida, respeitada e fortalecida em sua essência, o recurso não é apenas financeiro: é simbólico, espiritual, comunitário.
Muitos caminhos podem ser seguidos. Mas só aquele trilhado em conjunto, com cuidado, tempo e verdade, leva ao teko porã que os Guarani tanto ensinam ao mundo. Que cada passo nessa direção seja guiado não por metas, mas por cantos e que os projetos sejam como sementes sopradas pelos ventos da floresta.
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