Direitos Autorais e Atribuição Correta de Arte Indígena Guarani
- Michele Duarte Vieira

- 1 de set.
- 5 min de leitura
A Relevância da Autoria em Expressões Originárias
A arte Guarani é mais do que uma forma estética: ela carrega narrativas espirituais, histórias coletivas e cosmologias que estruturam o modo de vida de um povo. Pinturas, grafismos, cantos, esculturas em madeira ou artesanatos em fibras não são apenas produtos visuais ou utilitários; cada detalhe guarda um sentido espiritual e social. No entanto, quando essas expressões são levadas para contextos urbanos ou digitais sem cuidado, surgem conflitos: quem detém os direitos autorais da arte indígena Guarani sobre elas? Como garantir que a utilização respeite a origem e não se torne apropriação indevida?
Esse debate se intensifica em um mundo globalizado, no qual imagens e símbolos circulam rapidamente e, muitas vezes, perdem seu contexto original. Por isso, compreender direitos autorais e formas de atribuição correta da arte Guarani não é apenas uma questão legal, mas também de ética e reconhecimento.

O Que São Direitos Autorais na Arte Indígena Guarani em Contextos Culturais
Conceito ocidental e limitações
No campo jurídico, direitos autorais são mecanismos que asseguram ao criador de uma obra o controle sobre sua reprodução, distribuição e adaptação. Contudo, esse conceito nasceu em sociedades individualistas e capitalistas, centradas na ideia de um autor único e proprietário de uma criação.
Entre os Guarani, a lógica é outra. Muitas expressões artísticas pertencem ao coletivo, transmitidas de geração em geração. Um grafismo em cerâmica ou uma canção ritual não pode ser associado apenas a uma pessoa, mas à comunidade que o mantém vivo. Essa diferença cria lacunas na legislação, que tende a proteger indivíduos e não coletividades.
Direitos Coletivos e Patrimônio Imaterial
No Brasil, a Constituição reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras, mas o campo da cultura ainda enfrenta obstáculos. Instrumentos como o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) e a proteção de bens imateriais pelo IPHAN são passos importantes, mas insuficientes. Há necessidade de pensar em modelos de autoria coletiva, que assegurem que o uso da arte Guarani seja negociado com as comunidades e não apropriado por terceiros.
O Significado da Atribuição Correta
Muito além da citação
Atribuir corretamente uma arte Guarani não significa apenas mencionar a palavra “Guarani” em uma legenda. Trata-se de reconhecer a origem, os mestres que preservaram o saber, o território de onde vem o símbolo e o contexto em que ele deve ser usado.
Por exemplo, um grafismo aplicado em moda não pode ser reduzido a um padrão decorativo. Ele representa um ensinamento ancestral e, por isso, deve ser utilizado com autorização e diálogo. A atribuição correta é, portanto, um ato de respeito e reciprocidade, evitando que a arte seja esvaziada de seu sentido.
Dimensão ética e espiritual
Para os Guarani, cada traço carrega força espiritual. Utilizar indevidamente um símbolo pode ser entendido como violar a relação com os espíritos e desrespeitar a comunidade que o guarda. Portanto, mais do que evitar problemas legais, atribuir corretamente é preservar a dignidade de um povo e de sua espiritualidade.
Principais Desafios na Proteção da Arte Guarani
Ausência de legislação específica: as leis de direitos autorais não contemplam adequadamente criações coletivas.
Circulação digital: imagens retiradas da internet são reproduzidas em massa sem crédito ou autorização.
Mercantilização: símbolos sagrados são usados em logotipos, estampas e produtos comerciais sem consulta às comunidades.
Falta de conhecimento: muitas pessoas sequer sabem que esses grafismos são sagrados e pertencem a tradições específicas.
Esses desafios exigem estratégias práticas e caminhos de cooperação para equilibrar valorização cultural e proteção.
Passo a Passo para Garantir Atribuição Correta
1. Pesquisar a origem
Antes de usar qualquer elemento visual ou sonoro, é essencial identificar sua procedência. É Guarani Mbyá, Kaiowá ou Nhandeva? Cada subgrupo tem símbolos próprios, com significados distintos.
2. Consultar a comunidade
O diálogo direto é indispensável. Ao visitar uma aldeia, participar de oficinas ou manter contato com líderes culturais, é possível compreender o significado do símbolo e perguntar sobre sua utilização. Essa consulta deve ser feita com abertura e humildade.
3. Solicitar autorização formal
Sempre que possível, a autorização deve ser registrada por escrito ou por meio de um termo construído em conjunto com a comunidade. Isso protege ambos os lados e garante clareza sobre como a arte será utilizada.
4. Citar de forma detalhada
Na divulgação, é importante mencionar não só “arte indígena”, mas especificar:
Nome do povo (ex.: Guarani Mbyá).
Localidade (ex.: aldeia Tenondé Porã, São Paulo).
Nome dos artistas, quando autorizado.
Contexto cultural (ex.: grafismo ligado a rituais de iniciação).
5. Compartilhar benefícios
Atribuição correta não se limita ao crédito. Caso haja exploração comercial, parte dos lucros deve retornar à comunidade. Esse retorno pode ser financeiro, mas também em forma de apoio a projetos culturais, educacionais ou de infraestrutura.
6. Respeitar restrições espirituais
Nem toda arte pode ser usada livremente. Alguns cantos e grafismos são restritos a cerimônias específicas e não devem ser divulgados fora da comunidade. Reconhecer essas fronteiras é essencial para não ferir a espiritualidade Guarani.
Experiências de Valorização Respeitosa
Diversos projetos no Brasil já mostraram que é possível valorizar a arte Guarani com ética:
Coletivos de artesanato: grupos de mulheres Guarani produzem colares, cestarias e pinturas corporais, vendendo em feiras com identificação clara da origem.
Parcerias acadêmicas: universidades têm realizado registros audiovisuais com atribuição detalhada e participação ativa das comunidades.
Empresas conscientes: algumas marcas estabelecem acordos de licenciamento, nos quais os grafismos só são usados com autorização e com retorno financeiro à comunidade.
Esses exemplos demonstram que respeitar direitos autorais e atribuição correta não inviabiliza parcerias, mas as torna mais justas.
O Papel do Educador e do Pesquisador
Professores, antropólogos e artistas que trabalham com a cultura Guarani têm responsabilidade central. Ao publicar livros, organizar exposições ou criar materiais pedagógicos, devem:
Incluir referências às comunidades envolvidas.
Convidar representantes Guarani para participarem do processo.
Evitar interpretações simplistas ou reducionistas.
Esse cuidado não apenas fortalece a autoria, mas também rompe com séculos de invisibilização.
Caminhos Legais e Institucionais
Para consolidar a proteção da arte Guarani, algumas ações podem ser desenvolvidas:
Criação de legislações específicas que reconheçam autoria coletiva e espiritual.
Apoio a registros comunitários: os próprios Guarani podem elaborar inventários de seus símbolos e expressões.
Fomento a associações indígenas: organizações jurídicas fortalecem a capacidade de negociação e defesa dos direitos culturais.
Inserção em políticas públicas: programas culturais devem priorizar comunidades indígenas como protagonistas, e não apenas como fornecedores de “inspiração”.
Como Cada Pessoa Pode Contribuir
O respeito à autoria Guarani não depende apenas de leis, mas também da postura individual. Cada pessoa pode:
Verificar antes de compartilhar imagens nas redes sociais.
Evitar comprar produtos que usem símbolos indígenas sem origem identificada.
Participar de oficinas diretamente nas comunidades, apoiando financeiramente os artistas.
Divulgar informações corretas, valorizando a riqueza cultural sem estereótipos.
Essas atitudes individuais, somadas, criam uma rede de proteção muito mais eficaz do que mecanismos formais isolados.
Reflexão para Seguir Adiante
Proteger os direitos autorais e garantir atribuição correta à arte Guarani é um convite a mudar a forma como entendemos cultura. Não se trata de colecionar símbolos ou transformá-los em estampas exóticas. Trata-se de reconhecer que cada traço é memória, cada canto é oração e cada objeto é portador de espiritualidade.
Ao respeitar esses elementos, abrimos espaço para um diálogo intercultural mais justo, no qual a arte não é explorada, mas celebrada. E, sobretudo, permitimos que os próprios Guarani continuem sendo protagonistas de suas narrativas, preservando sua identidade e fortalecendo sua presença no mundo contemporâneo.
Assim, a verdadeira atribuição não está apenas na legenda de uma imagem, mas no compromisso de honrar os guardiões dessa arte e devolver a eles o reconhecimento que lhes é de direito.





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