Povos Originários: Chás Para Febres Espirituais
- Michele Duarte Vieira

- 30 de jul.
- 6 min de leitura
Quando o corpo arde sem motivo clínico aparente, muitas culturas ao redor do mundo recorrem não apenas a diagnósticos físicos, mas também ao entendimento espiritual da enfermidade. Nessas tradições, acredita-se que certas febres não são resultado apenas de vírus ou bactérias, mas sim do desequilíbrio da alma, do ataque de entidades ou da perda da energia vital. Em resposta a esse tipo de descompasso, os povos originários e comunidades tradicionais desenvolveram ao longo dos séculos uma farmacopeia rica de chás para febres espirituais, preparados com ervas consideradas sagradas. Estas infusões não visam apenas a cura física, mas principalmente a restauração do espírito, da energia e da conexão com o mundo invisível.
A seguir, um mergulho em diferentes etnobotânicas e suas soluções naturais para tratar o que chamam de “febres espirituais”, condições que se manifestam por sintomas físicos, como calafrios, delírios e suor excessivo, mas cuja origem é invisível aos olhos da medicina moderna.

A febre que vem do espírito
Na medicina indígena, afro-brasileira e de outras tradições ancestrais, a febre é muitas vezes compreendida como sinal de conflito entre o corpo e uma presença não acolhida: um espírito intruso, uma força ancestral não honrada, uma alma fragmentada. Em algumas culturas, como a dos povos amazônicos, é comum ouvir expressões como “a febre da floresta” ou “a quentura do espírito”, que se referem a estados alterados de consciência provocados por desequilíbrios espirituais profundos.
Nessas situações, os chás não são apenas bebidas, mas portais de reconexão. Cada planta possui um espírito guardião, e o ato de ferver, oferecer, cheirar e ingerir a infusão faz parte de um rito que envolve não só o corpo doente, mas toda a sua linhagem.
Chás para febres espirituais: sagrados e seus significados nas culturas tradicionais
Abaixo estão alguns dos chás mais utilizados no combate às febres espirituais, com destaque para o uso ritual, o preparo e as funções místicas atribuídas a cada planta.
1. Chá de Mulungu (Erythrina mulungu)
Origem: Cerrado e Amazônia;
Função espiritual: Pacificar o espírito e quebrar ataques noturnos.
O mulungu é conhecido por sua potente ação calmante, mas nas tradições dos povos do Alto Xingu, ele vai além: é um apaziguador de conflitos espirituais. O chá é preparado com a casca da árvore e administrado quando a pessoa apresenta febres com delírios ou pesadelos repetitivos. A febre, neste caso, é vista como um grito da alma tentando se proteger de influências externas. O chá de mulungu, acompanhado de cantos ou defumações, auxilia na reintegração da energia pessoal.
Modo de preparo:
Ferva 1 colher de sopa da casca em 500 ml de água por 10 minutos.
Coe e sirva morno antes de dormir, por até 3 noites seguidas.
2. Chá de Pariparoba (Piper umbellatum)
Origem: Mata Atlântica;
Função espiritual: Limpeza de cargas pesadas e feitiços.
A pariparoba é muito utilizada por benzedeiras e raizeiras no sudeste brasileiro para "baixar o fogo ruim". Segundo os ensinamentos orais, quando a febre espiritual é causada por inveja, maledicência ou olho gordo, esse chá age como um bálsamo de limpeza interna. Suas folhas grandes são símbolo de proteção e são frequentemente usadas também em banhos e defumações.
Modo de preparo:
Coloque 5 folhas em 1 litro de água fervente, abafe por 15 minutos.
Beba ao longo do dia e utilize também como banho da cabeça aos pés.
3. Chá de Jurema Preta (Mimosa tenuiflora)
Origem: Caatinga;
Função espiritual: Retorno da alma ao corpo.
A jurema preta, considerada uma planta mestra nas tradições do Catimbó e Jurema Sagrada, tem forte poder de reconduzir o espírito ao corpo quando há dispersão da energia vital. Nas febres que surgem após grandes sustos, perdas ou rituais mal conduzidos, a jurema é utilizada como reconectora da identidade espiritual. Seu chá é tomado em silêncio, de preferência em jejum, acompanhado de rezas específicas.
Modo de preparo (ritualístico):
A casca é triturada e macerada por horas em água fria.
Após o repouso, a infusão é coada e ingerida sob orientação de mestres juremeiros.
Importante: esse uso é sagrado e deve ser acompanhado de ritual correto.
4. Chá de Guiné (Petiveria alliacea)
Origem: Culturas afro-brasileiras;
Função espiritual: Corte de demandas espirituais negativas
Na Umbanda e no Candomblé, o guiné é considerado uma das ervas mais poderosas para corte de energias negativas. Quando a febre é causada por encosto, demanda ou trabalho de baixa frequência, o chá de guiné atua como espada protetora. Ele pode ser tomado, mas é mais comum seu uso em banhos e lavagens de cabeça.
Modo de preparo:
Ferva 3 ramos em 1 litro de água.
Coe e beba 1 xícara ao dia, ou use como banho espiritual após o pôr do sol.
5. Chá de Breu Branco (Protium heptaphyllum)
Origem: Amazônia;
Função espiritual: Elevação da consciência e purificação
Embora mais comum como resina para defumações, o breu branco também pode ser ingerido em pequenas doses, após infusão com outras ervas. Nas febres espirituais que envolvem perdas de sentido, confusão mental e sensação de “desligamento do corpo”, ele atua como guia para trazer clareza. A fumaça do breu também é usada para limpar o ambiente onde a pessoa repousa, criando uma “barreira de luz”.
Modo de preparo (com acompanhamento experiente):
Misturar uma lasca de breu branco com capim-santo e camomila em infusão.
Beber morno, apenas 1 vez, com intenção clara de cura e proteção.
6. Chá de Santa Maria (Chenopodium ambrosioides)
Origem: América Central e difundido no Brasil;
Função espiritual: Expulsão de entidades intrusas.
Conhecida como “erva de lombriga”, a Santa Maria também possui um papel espiritual importante. Nas tradições mexicanas e em comunidades andinas, ela é usada para expurgar não apenas parasitas físicos, mas também espirituais. Em casos de febre persistente sem causa clínica, acredita-se que a alma foi invadida por um espírito errante. O chá atua como purgante e exige repouso após o uso.
Modo de preparo:
5 folhas em 300 ml de água fervente, infundir por 10 minutos.
Beber 1 xícara ao dia por 3 dias, acompanhado de banhos com arruda.
Como conduzir um ritual completo com chás espirituais
A eficácia desses chás está diretamente ligada à forma como são preparados e oferecidos. O processo ritualístico é essencial para despertar o espírito da planta e permitir que ela se comunique com o corpo sutil da pessoa.
Passo a passo para o uso consciente dos chás sagrados:
Escolha da planta: identifique o tipo de febre espiritual, causada por susto, inveja, feitiço, perda da alma ou contaminação energética;
Colheita ou compra com intenção: se possível, colha a planta com respeito, pedindo permissão à natureza. Caso compre, agradeça à força da erva antes de utilizá-la;
Preparação em silêncio: enquanto ferve a água e manipula a planta, mantenha pensamentos de cura e proteção. Evite distrações ou conversas;
Consagração da infusão: antes de beber ou aplicar como banho, sopre sobre o líquido palavras de poder, cânticos ou preces, dependendo de sua tradição espiritual;
Repouso após o uso: reserve pelo menos 30 minutos para deitar-se, respirar e permitir que o espírito da planta atue;
Registro dos sonhos e visões: nas horas ou dias seguintes, anote o que surgir em sonhos, pois são mensagens de cura em curso.
Quando buscar ajuda especializada
Embora os chás sejam poderosos aliados, é essencial compreender seus limites. Febres persistentes devem ser avaliadas por profissionais da saúde. Quando a febre é acompanhada de sintomas graves ou prolongados, o ideal é buscar também orientação de uma benzedeira, pajé, mãe de santo ou curandeiro com experiência comprovada. A combinação entre saberes tradicionais e medicina moderna pode salvar vidas.
Um chamado à reconexão com os remédios da alma
Os chás tradicionais que combatem febres espirituais não são simples infusões, mas manifestações do profundo elo entre o humano e o sagrado. Cada folha fervida carrega consigo o espírito de um saber ancestral, que ainda hoje pulsa forte em aldeias, terreiros e lares que respeitam a medicina da floresta.
Em tempos de pressa e diagnósticos automatizados, redescobrir a linguagem das plantas é uma forma de retornar ao próprio centro. Quando o corpo arde e a alma grita, talvez o que se precise não seja apenas de um antitérmico, mas de um chá silencioso, soprado com intenção, preparado com respeito, oferecido com fé.
Essa sabedoria não é nova, mas eterna. E continua disponível, folha por folha, para quem se dispuser a ouvir.





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