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Sistemas de Recompensa com Numerais Guarani

  • Foto do escritor: Michele Duarte Vieira
    Michele Duarte Vieira
  • 15 de jun.
  • 4 min de leitura

Em muitos contextos educacionais bilíngues e interculturais, o desafio não está apenas no conteúdo curricular, mas na forma como ele é apresentado. É possível motivar alunos indígenas e também não indígenas, com metodologias que respeitem e integrem as estruturas cognitivas próprias de suas culturas. No caso do povo Guarani, os numerais carregam um valor que vai além do quantitativo: eles possuem dimensão simbólica, relacional e social.


Ao utilizar sistemas de recompensa com base nos numerais Guarani, o educador pode ativar motivações internas mais profundas, favorecendo o protagonismo dos estudantes, o respeito à língua materna e o fortalecimento da identidade cultural.

Numerais

O que torna os numerais Guarani tão especiais?

Diferentemente da abordagem ocidental, os numerais em Guarani não são apenas unidades contáveis; eles integram um sistema de relações. Veja alguns exemplos do sistema cardinal básico:

  • Peteĩ – 1

  • Mokoĩ – 2

  • Mbohapy – 3

  • Irundy – 4

  • Po – 5

  • Poteĩ – 6

  • Pokõi – 7

  • Povapy – 8

  • Porundy – 9

  • Paha – 10


Cada termo carrega sonoridade própria, cadência ritmada e uma lógica que é ensinada muitas vezes por meio da oralidade e da música. A contagem tradicional Guarani é frequentemente acompanhada de gestos ou expressões simbólicas que indicam relação com o mundo natural (dedos, ciclos lunares, partes do corpo, etc.).


Por isso, um sistema de recompensa baseado nesses numerais pode se tornar uma prática altamente significativa quando elaborado com consciência pedagógica e respeito cultural.


Por que usar sistemas de recompensa?

Embora a motivação intrínseca deva ser sempre valorizada, recompensas estruturadas, se bem aplicadas, funcionam como:

  • Marcadores de progresso: mostram o quanto o aluno já avançou;

  • Estímulos concretos: tornam visível o que antes era abstrato;

  • Ferramentas de engajamento: envolvem mesmo os alunos menos participativos;

  • Recursos culturais vivos: se baseados em elementos da cultura Guarani, valorizam a sabedoria tradicional em contexto escolar.


Passo a passo: construindo um sistema de recompensa com numerais Guarani


1. Defina o que será recompensado

Antes de pensar em pontos ou recompensas, determine quais comportamentos ou desempenhos você deseja reforçar. Exemplos:

  • Participação oral em Guarani;

  • Contribuição para atividades coletivas;

  • Cooperação com colegas;

  • Realização de tarefas em casa;

  • Contagem correta usando a língua Guarani.


A recompensa não deve ser aleatória: ela precisa estar conectada ao que se deseja incentivar.


2. Escolha a escala de numerais Guarani a ser utilizada

Uma escala pequena (1 a 5) pode funcionar bem com crianças pequenas. Para alunos maiores, pode-se expandir até 10 ou mesmo usar números compostos (12, 20, 25), sempre com a forma correta em Guarani.


Exemplo de escala básica:

Ponto

Guarani

1

Peteĩ

2

Mokoĩ

3

Mbohapy

4

Irundy

5

Po

O ideal é que a criança vá “ganhando” numerais conforme evolui — e aprenda naturalmente a pronúncia e o significado.


3. Crie representações visuais ou físicas para os pontos

Para tornar a experiência concreta, crie:

  • Cartões com os numerais Guarani escritos em letra grande;

  • Pedras pintadas com os números e símbolos tradicionais;

  • Cartazes ilustrativos com a quantidade e a palavra correspondente;

  • Pulseiras ou colares de contas (uma conta por ponto).


Esses materiais podem ser confeccionados em atividades artesanais com os próprios alunos, valorizando também a estética Guarani.


4. Associe recompensas simbólicas ou sociais aos marcos numéricos

Ao atingir Mbohapy (3), por exemplo, o aluno pode:

  • Escolher a próxima música da aula;

  • Contar uma história para a turma;

  • Receber um elogio público em Guarani;

  • Ensinar uma palavra nova a um colega.


Evite recompensas materiais com valor econômico. Prefira as que reforcem o pertencimento, a autonomia e o reconhecimento entre pares.


5. Inclua a contagem oral nas rotinas da sala

A cada nova conquista, conte coletivamente até o número alcançado, sempre em Guarani. Isso estimula:

  • Pronúncia correta;

  • Ritmo coletivo;

  • Memória auditiva;

  • Compreensão do sistema numeral como ciclo.


Exemplo: ao chegar em Poteĩ (6), toda a turma repete juntos: “Peteĩ, mokoĩ, mbohapy, irundy, po, poteĩ!”


Integração com outras áreas do conhecimento

Esse sistema pode dialogar com diversas áreas:

Matemática

  • Introdução às operações: “Se João tem mokoĩ pontos e ganha mais mbohapy, quantos pontos ele tem?”;

  • Comparação: “Quem tem porundy? Quem tem irundy?”;

  • Representação gráfica: criação de tabelas de progresso.


Língua Guarani

  • Fixação da fonética;

  • Compreensão oral e leitura dos numerais;

  • Produção textual: “Escreva como você ganhou peteĩ ponto”


História e cultura

  • Pesquisa sobre a origem dos numerais Guarani;

  • Criação de um “livro de contagem tradicional”;

  • Relatos orais com anciãos que usam esses números no cotidiano.


Artes e expressão

  • Confecção de objetos com base nos numerais;

  • Pintura corporal ou símbolos visuais ligados à contagem;

  • Canções tradicionais que incluam a sequência numérica.


Exemplos de aplicação em diferentes faixas etárias


Educação Infantil (4 a 6 anos)

  • Uso de cantigas de contagem;

  • Jogo do “mokoĩ pula-pula” (duas puladas, três agachamentos);

  • Distribuição de “sementes do dia” conforme a participação.


Ensino Fundamental (7 a 11 anos)

  • Gráficos com evolução de pontos;

  • Recompensas coletivas ao atingir paha (10);

  • Cartões coloridos com palavras numerais e ilustrações.


Educação Bilíngue (com alunos não indígenas)

  • Ensino comparado de numerais Guarani e português;

  • Atividades de tradução e equivalência fonológica;

  • Rodas de conversa sobre a importância da diversidade linguística.


Evite armadilhas comuns

Embora a proposta seja poderosa, é necessário cuidado para não descaracterizar ou banalizar os saberes Guarani. Evite:

  • Transformar a língua em instrumento apenas “decorativo”;

  • Aplicar o sistema sem consulta ou validação da comunidade local;

  • Usar recompensas que estimulem competição agressiva;

  • Tornar a contagem um processo automático e vazio.


A presença de educadores ou mediadores Guarani é essencial para manter o espírito da proposta autêntico e respeitoso.


Tornando o aprendizado uma celebração

Quando um estudante chega ao numeral Po (5), não é apenas um número. É um marco de participação, de escuta, de esforço e de laço com sua própria história. Ele não ganhou uma ficha: ele se viu dentro da aula, como protagonista.


Mais do que um recurso pedagógico, os sistemas de recompensa baseados em numerais Guarani são pontes entre mundos. Um educador atento e comprometido pode transformar a matemática em poesia, o vocabulário em pertencimento, a rotina da sala em ritual de reconhecimento.


Ao escutar um coro de crianças dizendo “Mokoĩ! Mbohapy! Irundy!”, não ouvimos apenas números. Ouvimos gerações se reencontrando, línguas se reafirmando, e futuros sendo semeados.

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