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Como Entender o Tempo e o Espaço dos Povos Originários Sem Relógio

  • Foto do escritor: Michele Duarte Vieira
    Michele Duarte Vieira
  • 5 de jul.
  • 4 min de leitura

O que é tempo e espaço dos povos originários quando não se tem relógio?


O tempo e espaço dos povos originários não é uma linha reta com passado, presente e futuro em sequência lógica. Não há horas marcadas por ponteiros nem compromissos divididos por cronogramas. O tempo, nesse universo, é circular, vivo e profundamente espiritual. Ele se entrelaça com o movimento do corpo, com o pulsar da floresta, com os ciclos da lua e com os sinais dos animais.


Nesse modo de viver, o tempo é sentido, observado e partilhado. Ele não se mede, se experimenta. E, mais do que isso, o tempo não é separado do espaço: ambos formam uma única realidade, em que cada elemento está em constante relação com o todo.

relógio do sol

O tempo que canta, dança e observa

Enquanto na sociedade ocidental o tempo é controlado, nos povos indígenas o tempo é acompanhado com os sentidos. O cheiro da terra molhada anuncia o período de plantio. A cor do céu avisa a chegada de uma estação. O canto de uma ave indica quando migrar ou quando iniciar um ritual.


Entre os Huni Kuin, por exemplo, o tempo se manifesta na música. Determinados cantos (nixi pae) são entoados apenas em momentos muito específicos do ciclo cerimonial, e cada canção guarda um ensinamento. Já entre os Guarani Mbya, o tempo espiritual é percebido por meio da escuta interior: é preciso sentir se “o tempo da alma está preparado” para determinada ação.

O tempo, aqui, não corre, ele amadurece.


Ciclos naturais como calendário espiritual

Sem relógios ou agendas, os povos originários desenvolvem calendários baseados em ciclos naturais observados com precisão ancestral.


As fases da lua

Nas comunidades Pankararu, por exemplo, a lua regula os dias propícios para plantar, cortar cabelo, fazer batismos ou realizar curas. Há luas que curam, luas que fortalecem e luas que devem ser evitadas.


A maturação da roça

Entre os Ashaninka, o tempo da colheita não é um mês do calendário, mas o amadurecimento das folhas, o cheiro do milho, o som dos insetos.


O comportamento dos animais

O retorno de certos pássaros anuncia rituais de passagem entre os Kayapó. A primeira revoada de andorinhas pode significar o início de um novo ciclo espiritual.


Esses calendários não são apenas práticos. São expressões de equilíbrio entre o corpo coletivo e a natureza, e exigem sensibilidade para serem lidos com o coração, não com o cronômetro.


O espaço como corpo vivo

Se o tempo não é uma linha, o espaço tampouco é um lugar fixo com coordenadas frias. Para os povos originários, o espaço é relacional e simbólico. Não se caminha apenas sobre o solo, caminha-se entre seres.


A aldeia, por exemplo, não é um aglomerado de casas: ela possui um coração (normalmente a casa de rituais), uma direção de entrada e saída, uma borda que protege, um centro que reúne.


Exemplos práticos:

  • Entre os Mehinaku, a disposição das casas circulares ao redor da casa dos homens representa a organização cósmica;

  • Entre os Guarani, as trilhas da mata são vistas como veias espirituais, por onde circulam forças invisíveis;

  • Para os Yanomami, cada montanha, pedra ou igarapé tem nome, espírito e memória. Ao atravessá-los, é necessário dialogar, pedir licença ou oferecer cânticos.


O espaço, nesse universo, é um ser sensível. E quem o ignora adoece ou se perde.


Passo a passo: como o tempo e o espaço são ensinados desde a infância

O aprendizado não é didático. Ele se dá pela convivência, pela repetição e pelo encantamento com o mundo.


1. Observar em silêncio

Desde cedo, a criança indígena aprende que escutar a floresta é essencial. O silêncio não é ausência. É escuta ativa. É assim que se percebe o canto certo no tempo certo.


2. Imitar os mais velhos

O tempo não é explicado, é vivido. As crianças observam como os mais velhos plantam apenas após determinados sinais da natureza. Como esperam certos ciclos antes de realizar cerimônias. Assim, o tempo é herdado no corpo.


3. Participar dos rituais

A noção de tempo se fortalece nos rituais de passagem. Cada fase da vida possui um rito, infância, puberdade, gestação, maturidade. O tempo, então, é ritualizado.


4. Narrar histórias no tempo certo

As histórias dos ancestrais só podem ser contadas em determinadas épocas do ano. Isso ajuda a criança a perceber que o tempo não é qualquer tempo, há um tempo certo para cada narrativa emergir.


5. Aprender com o próprio corpo

Com o tempo, o corpo passa a sentir o momento certo para colher, cantar, andar ou parar. É como se o organismo se sintonizasse com o ambiente. Não é mágica, é escuta.


Comparando: tempo linear x tempo espiralado

Tempo Ocidental

Tempo Originário

Linha reta

Círculo ou espiral

Medido por máquinas

Percebido pelos sentidos

Controlado por agendas

Alinhado aos ciclos vivos

Separado do espaço

Fundido ao território

Fragmentado

Integral e contínuo


Essa comparação mostra que não é apenas uma diferença de cultura, mas de percepção de mundo. O tempo dos povos originários é um tempo que acolhe, que escuta, que respeita. Ele não acelera nem pressiona. Ele acompanha o ritmo da vida.


A importância de desacelerar: o que podemos aprender

Com a atual crise ambiental, emocional e social, há muito o que aprender com a maneira originária de viver o tempo e o espaço.


Desacelerar não é sinônimo de atraso, é reconexão com o que importa. Voltar os olhos para a natureza como bússola, usar os sentidos como instrumentos e perceber o corpo como guia podem nos devolver um tempo mais saudável.


Reinserir o espaço como algo sagrado, não como território de consumo, nos faz caminhar com mais leveza e presença.


O tempo é ancestral e está em você

Quando você se silencia e observa o ciclo da lua, quando caminha pela mata sem pressa, quando escuta o som da água correndo ou deixa o sol marcar a passagem do dia no seu corpo... você está acessando o tempo profundo que os povos originários nunca deixaram de sentir.


Esse tempo ainda pulsa, apesar das cercas, dos relógios digitais e das agendas lotadas. Ele pulsa no canto de um passarinho, no cheiro da chuva, no ciclo menstrual, no ritmo das sementes germinando.


Os povos originários nos mostram que não se trata de voltar ao passado, mas de relembrar o que foi silenciado. O tempo não se perdeu — apenas se escondeu atrás de ponteiros.


Quem aprende a escutá-lo novamente, descobre que o tempo não corre. Ele acompanha.


E o espaço... o espaço não é cenário. É presença viva que nos convida a voltar para casa, a casa da terra, do corpo e do espírito.

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