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Como as Plantas Medicinais São Classificadas Pelas Parteiras Indígenas

  • Foto do escritor: Michele Duarte Vieira
    Michele Duarte Vieira
  • 11 de jul.
  • 6 min de leitura

A sabedoria das parteiras indígenas vai muito além do ato de assistir partos. Trata-se de um profundo sistema de conhecimento sobre o corpo, o espírito e os ciclos naturais, onde as plantas medicinais desempenham um papel vital. Entre raízes, cascas, folhas e resinas, essas mulheres guardam, compartilham e transformam saberes milenares que desafiam classificações ocidentais. A forma como as parteiras organizam, interpretam e utilizam as plantas revela uma ciência viva, baseada em observação, espiritualidade, experiências coletivas e cura integral.


Neste mergulho respeitoso, vamos compreender como as parteiras indígenas classificam as plantas medicinais de maneira holística, conectando corpo, território, ancestralidade e energia vital. Cada planta tem um espírito, uma função e uma forma própria de atuar, e cada parteira, dentro de sua comunidade, carrega chaves únicas de interpretação que revelam muito sobre o universo simbólico e funcional desses saberes.

plantas medicinais

O que orienta o olhar das parteiras indígenas sobre as plantas

A relação entre parteiras indígenas e as plantas é profundamente sensível e intuitiva. A classificação não se baseia apenas em princípios químicos ou anatômicos, mas em experiências vividas, narrativas orais e uma escuta profunda do corpo e da natureza.


Alguns eixos principais orientam essa classificação:

  • A função espiritual e energética da planta;

  • A parte da planta que carrega o “princípio ativo espiritual”;

  • O ciclo da lua, da gravidez ou da doença em que a planta age melhor;

  • A origem territorial e a identidade da planta (rio, mata fechada, cerrado, etc.);

  • A comunicação entre a planta e o corpo da mulher.


Esses critérios não estão em compartimentos fixos: eles se interpenetram, criam combinações únicas e exigem um olhar que compreenda o tempo da natureza, os sinais do corpo e a escuta do invisível.


Raiz, folha ou flor? A importância de cada parte segundo as parteiras

Na tradição das parteiras indígenas, cada parte da planta tem uma função específica. Mais do que um recorte anatômico, trata-se de uma leitura energética e simbólica. A escolha da parte a ser utilizada envolve cuidado, escuta e um código simbólico que varia entre povos.


Raízes: profundidade, origem e cura estrutural

As raízes são vistas como fontes de força ancestral. Parteiras recorrem a elas quando é necessário tratar o que está enraizado no corpo ou no espírito, doenças que vêm “de dentro”, dores persistentes, medos antigos. Em casos de gestação com ameaças ou partos complicados, as raízes são usadas para firmar, proteger ou fortalecer o útero.

"A raiz é para quando a mulher está fraca no espírito. É debaixo da terra que vem a força dela." — Parteira Tukano

Folhas: respiração, equilíbrio e purificação

As folhas são associadas ao ar, ao frescor e à purificação dos caminhos internos. São muito utilizadas em banhos, defumações e chás leves. Parteiras usam folhas para equilibrar o calor do corpo, baixar febres pós-parto, limpar energias negativas e preparar o corpo para a amamentação.


Flores: expansão, abertura e emoção

As flores são delicadas, mas poderosas. Ajudam na abertura dos afetos, da sexualidade e da comunicação entre mãe e bebê. São usadas em banhos para atrair boas energias, em compressas para acalmar, e em óleos para massagens durante o trabalho de parto.


Frutos e sementes: continuidade e vitalidade

Frutos e sementes estão ligados à fertilidade e à força do futuro. Parteiras utilizam essas partes para estimular a produção de leite, tratar infecções intestinais, e em rituais de bênção de recém-nascidos. A semente carrega o poder de gerar, por isso, exige uso cuidadoso.


Casca e resina: proteção e regeneração

As cascas são utilizadas em infusões para proteger e regenerar, especialmente o útero e o sangue. Já a resina, como a do breu ou do jatobá, é aplicada em defumações, pomadas e ungüentos para proteger mãe e filho contra o “mau-olhado” ou fragilidades espirituais.


Classificação espiritual e energética: plantas “frias”, “quentes” e “duplas”

Parteiras classificam as plantas também de acordo com sua energia. Essa divisão varia de povo para povo, mas a lógica é universal entre muitas culturas indígenas:

  • Plantas “quentes”: ativam, aceleram, fortalecem. Usadas no parto, para estimular contrações, curar dores nas articulações, tratar estagnações;

  • Plantas “frias”: acalmam, refrescam, limpam. Indicadas no pós-parto, para baixar febres, tratar inflamações e neutralizar energias densas;

  • Plantas “duplas” ou “equilibradas”: possuem tanto a energia fria quanto a quente e são aplicadas quando é preciso harmonizar estados extremos do corpo ou do espírito.


Essa classificação também orienta a combinação das plantas. Parteiras raramente usam uma planta sozinha. Elas mesclam, ajustam e equilibram conforme o diagnóstico do corpo e a leitura espiritual do momento vivido pela mulher.


Passo a passo: como se aprende a classificar e utilizar as plantas

Nas comunidades indígenas, o aprendizado das parteiras ocorre de forma oral, prática e ritualizada. Não há apostilas, mas há códigos. Não há graduações, mas há iniciações. A seguir, um passo a passo simbólico que revela como esse saber se organiza:


1. Escuta do corpo e do território

Antes de aprender a usar qualquer planta, a parteira aprende a escutar: o corpo das mulheres, os sinais da mata, o cheiro do rio, a textura do solo. Essa escuta é o primeiro idioma da medicina tradicional.

2. Observação das mais velhas

As aprendizes acompanham as parteiras mais experientes. Assistem partos, colhem plantas, ouvem histórias, ajudam a preparar os banhos. Não há separação entre viver e aprender.

3. Reconhecimento dos espíritos das plantas

Cada planta tem um espírito, um nome secreto, um jeito de ser tocada e colhida. A parteira aprende a pedir licença à planta, a oferecer fumo, palavras ou canto, e a interpretar seus sinais.

4. Experimentação em si mesma e no coletivo

Muitas vezes, a parteira testa as plantas em si mesma antes de oferecer a outra mulher. Ela observa reações, sonha com as plantas, e compartilha suas percepções com outras mulheres do grupo.

5. Rituais e cerimônias de passagem

O saber se torna responsabilidade. Em muitas etnias, há ritos específicos que reconhecem uma mulher como parteira. Nesse momento, ela recebe do grupo o direito de conduzir a cura com plantas e palavras.


Quando usar, quando não usar: critérios das parteiras

Parteiras não utilizam todas as plantas o tempo todo. Há ciclos, ritmos e restrições que precisam ser respeitados. Algumas práticas incluem:

  • Evitar plantas quentes em gestantes muito sensíveis ou com sangramentos;

  • Não misturar mais de três plantas em um mesmo banho sem conhecimento profundo;

  • Não colher plantas em dias de “vento errado” ou quando a lua está contra o corpo;

  • Observar sonhos, visões e sinais antes de indicar uma planta nova;

  • Conversar com o espírito da planta antes de administrá-la a uma criança ou recém-nascido.


O saber das parteiras é também um saber de limites. Saber quando não fazer é tão importante quanto saber quando fazer.


Variações entre povos: classificações plurais

Cada povo tem suas particularidades. As parteiras Guarani, por exemplo, classificam as plantas segundo o tipo de “alma” que carregam: plantas de proteção, de nutrição, de fertilidade e de passagem. Já entre os Huni Kuin, existe uma divisão entre as plantas que pertencem ao mundo visível e aquelas que se comunicam com os encantados, sendo estas últimas usadas apenas em rituais.


Entre os Tikuna, as parteiras distinguem plantas que “abrem o caminho” (facilitam o parto ou a gestação) daquelas que “fecham o corpo” (suspendem sangramentos, fecham o útero, restauram a força depois do parto). Nos povos do cerrado, como os Xavante, há grande atenção à temperatura do corpo e à secura ou umidade dos órgãos internos, o que também orienta as escolhas.


Essas variações mostram que não há um único sistema de classificação, mas sim uma constelação de conhecimentos adaptados ao ecossistema, à cultura e à experiência espiritual de cada povo.


O que podemos aprender com esse olhar

A forma como as parteiras indígenas classificam as plantas nos ensina a desacelerar, a escutar e a respeitar os ritmos da vida. Enquanto a ciência ocidental busca princípios ativos isolados, a sabedoria das parteiras se concentra na relação, entre planta e corpo, entre mulher e território, entre doença e alma.


Essas classificações não podem ser totalmente traduzidas para manuais acadêmicos, pois carregam camadas de simbolismo, história e vivência que escapam à lógica cartesiana. No entanto, elas oferecem caminhos preciosos para repensarmos nossas práticas de saúde, nosso vínculo com a terra e o valor das tradições vivas.


O respeito por essas classificações não é apenas uma questão de conhecimento, mas de ética: reconhecer o direito dos povos indígenas à autonomia de seus saberes e à transmissão de sua própria medicina.


Quando uma folha fala: um convite para escutar mais do que ver

Se uma folha pode acalmar um útero, se uma raiz pode conversar com o medo, se uma flor pode abrir a alma de uma mulher em trabalho de parto, então, estamos diante de um conhecimento que pede silêncio, reverência e escuta.


Mais do que uma lista de plantas ou fórmulas, o que as parteiras indígenas oferecem é um mapa de relação. Cada planta carrega uma história de cuidado, uma canção de cura, um gesto de vida. E talvez, ao observar como elas classificam, combinam e reverenciam essas plantas, possamos também reaprender a ouvir aquilo que a terra nos sussurra há séculos.

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