Uso de Marcadores de Sementes na Pontuação Guarani
- Michele Duarte Vieira

- 27 de mai.
- 5 min de leitura
Em muitas culturas indígenas sul-americanas, os jogos tradicionais não são apenas formas de entretenimento, mas expressões vivas de cosmologias, relações comunitárias e práticas pedagógicas. No universo Guarani, os jogos assumem papéis significativos na socialização, na aprendizagem e no fortalecimento de vínculos com a terra e com os espíritos. Em particular, a pontuação dos jogos tradicionais Guarani vai além de números: ela pode ser tátil, simbólica e ritual.
Neste contexto, o uso de marcadores de sementes na pontuação é mais do que uma alternativa sensorial. É um retorno às raízes do jogo como vivência sensorial, onde o toque, o som e o ritmo tornam-se aliados da aprendizagem e da conexão cultural. Aqui, vamos explorar como incorporar esses marcadores orgânicos na prática de jogos Guarani, de maneira respeitosa e funcional, aprofundando-se nas técnicas, nos significados e no passo a passo para aplicação.

O jogo como extensão do território e da memória
Na tradição Guarani, o jogo não é um espaço isolado do cotidiano. Ele emerge das práticas de plantio, das trilhas na mata, das histórias cantadas. A pontuação, portanto, não se reduz a um critério técnico, mas faz parte da estética do jogo. A ideia de substituir sistemas de contagem modernos por marcadores de sementes reforça essa organicidade.
Por que sementes? Porque elas carregam memória. Sementes são ciclos em repouso. Quando tocadas ou movimentadas, elas não apenas contam pontos — elas contam histórias.
Por que tornar a pontuação tátil?
A maioria dos jogos modernos privilegia a visão: números anotados, quadros de pontuação, gráficos. Ao introduzir a tátilidade, algo muda na relação dos jogadores com o jogo. Em contextos Guarani, essa mudança é ainda mais profunda:
Acessibilidade cultural e sensorial: crianças e anciões podem participar da contagem com o toque e o som;
Reforço da oralidade e do gesto: em vez de olhar para uma tabela, o jogador sente e ouve o progresso da partida;
Valorização dos elementos naturais: usar sementes da própria região insere o território no próprio jogo.
Escolhendo as sementes corretas
A seleção das sementes é um dos passos mais importantes. Não se trata de pegar qualquer tipo de semente, mas de encontrar aquelas que tenham resonância cultural, valor simbólico e praticidade. Aqui estão alguns exemplos:
Semente | Significado Guarani | Usos recomendados |
Kumandá (feijão nativo) | Alimentação ancestral, fartura | Contagem simples |
Mbopi (sementes de mamona) | Proteção, vitalidade | Marcação de etapas ou fases |
Kurupa'y (angico) | Força dos espíritos das árvores | Marcação de pontos maiores |
Mbopi’i (sementes pequenas) | Agilidade, movimento | Subdivisões ou bônus |
É importante conversar com conhecedores locais ou lideranças espirituais para confirmar a adequação simbólica de cada tipo de semente.
Formas de disposição tátil no tabuleiro ou chão
Depois da escolha das sementes, o próximo passo é pensar como elas serão dispostas no espaço do jogo. A disposição precisa ser intuitiva e visualmente compreensível, mas acima de tudo, deve poder ser sentida com as mãos.
Modelo 1: Fileiras de progressão linear
Ideal para jogos de corrida ou avanço.
Cada jogador tem uma linha;
A cada ponto, uma nova semente é colocada;
Pode-se utilizar uma cumbuca de barro como “meta”.
Modelo 2: Círculo dos pontos
Para jogos cíclicos ou rituais.
As sementes são colocadas em um pequeno círculo de casca de árvore;
A cada volta ou conquista, uma semente entra no círculo;
O som pode ser utilizado: ao colocar a semente, bater duas vezes com o dedo.
Modelo 3: Cacho invertido
Perfeito para jogos em equipe.
Cada grupo tem um cordão de palha com sementes presas;
A cada conquista, o cordão é pendurado mais alto no galho de uma árvore ou suporte de madeira;
Isso permite ver quem “cresceu mais” visualmente e simbolicamente.
Passo a passo para implementar no jogo
Vamos agora a um passo a passo prático para quem quer transformar a pontuação de um jogo Guarani com o uso de sementes táteis.
Etapa 1: Escolha do jogo tradicional
Não são todos os jogos que se beneficiam da pontuação tátil. Priorize:
Jogos de equipe;
Jogos com duração moderada ou longa;
Jogos com envolvimento ritual ou narrativo.
Exemplo: o jogo do “Takua'i”, onde os jogadores disputam o equilíbrio de bastões enquanto entoam cantos ancestrais.
Etapa 2: Coleta e preparação das sementes
Converse com membros da comunidade sobre quais sementes usar;
Realize a coleta respeitando o ciclo natural e as proibições rituais;
Limpe, seque e, se necessário, envernize com óleo de andiroba ou urucum;
Separe por tamanho e tipo.
Etapa 3: Criação do sistema de pontuação
Defina:
Quantos pontos equivalem a cada tipo de semente?
Como elas serão manipuladas (colocadas, trocadas, acumuladas)?
Haverá sons ou gestos associados à colocação?
Dica importante: associe movimentos corporais simples a cada semente — por exemplo, ao colocar uma semente de Kurupa'y, o jogador pode dizer uma frase curta em Guarani, como "mba’e nde rembipota", que evoca intenção.
Etapa 4: Integração com o jogo
Não interrompa o ritmo do jogo para marcar os pontos. Ao contrário:
Que a marcação seja integrada à jogada;
Pode-se usar tambores leves ou chocalhos para pontuar simbolicamente a ação.
Etapa 5: Fechamento coletivo
Ao final do jogo:
Recolham juntos as sementes;
Permitam que cada grupo ou jogador diga em voz alta o que “plantou” naquele jogo (reflexão simbólica);
As sementes podem ser guardadas em pequenas bolsas feitas de croá ou fibra de bananeira, como troféus não materiais.
Jogos mais táteis, corpos mais presentes
Ao adotar marcadores de sementes na pontuação, abre-se a possibilidade de um jogo mais sensível, mais corporal e menos mediado por abstrações externas. A mão que toca uma semente ativa uma memória sensorial. O ouvido que escuta o som de uma semente caindo em uma cuia ou sendo manipulada reconhece um gesto que vai além do número.
Nos contextos Guarani, esse tipo de gesto reconecta corpo e território. Reconecta também crianças com seus avós, pois muitos anciões que já não veem com nitidez continuam ouvindo com a alma e sentindo com as mãos.
Incorporando o sagrado no jogo
Nem todo jogo precisa ser ritual, mas mesmo os jogos de lazer podem carregar um elemento de respeito, de escuta e de vínculo. As sementes não são apenas objetos de contagem, mas fragmentos vivos de mundos em miniatura.
Ao usar sementes como marcador, propõe-se também uma pedagogia do cuidado:
Cuidado ao tocar;
Cuidado ao contar;
Cuidado ao perder ou ganhar.
Perder uma semente pode significar a necessidade de ouvir mais o grupo. Ganhar uma semente pode significar assumir uma responsabilidade naquele ciclo do jogo.
Quando o jogo vira celebração
Em uma das aldeias Mbya no sul do Brasil, há um jogo de fim de tarde onde as crianças correm em círculos enquanto os adultos tocam tambor. Cada vez que completam uma volta, uma semente é colocada em sua faixa de tecido amarrada na cintura. Ao final, não há vencedor. Há um grupo com sementes suficientes para plantar um canto coletivo ao redor da fogueira.
Esse é o espírito que inspira o uso tátil da pontuação. Transformar a contagem em cantiga. Transformar o número em símbolo. Transformar a vitória em comunhão.
Siga com as mãos, com o coração e com o território
Ao resgatar elementos como os marcadores de sementes na pontuação Guarani, estamos indo além do jogo como disputa. Estamos reconstruindo pontes com a ancestralidade, com a ecologia da escuta e com formas mais coletivas de estar no mundo.
Na próxima vez que propuser um jogo em contexto Guarani ou mesmo fora dele, em projetos interculturais, experimente tocar antes de contar. Sentir antes de classificar. Ouvir o som que uma semente faz quando aceita entrar no jogo.
Porque às vezes, tudo o que um jogo precisa para voltar a ser semente…é alguém disposto a jogá-lo com as duas mãos.





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