Como Pesquisar e Respeitar Símbolos Guarani ao Ilustrar Jogos
- Michele Duarte Vieira

- 30 de mai.
- 5 min de leitura
Em tempos em que a valorização de saberes originários ganha espaço nas práticas educacionais, artísticas e lúdicas, cresce o interesse por incorporar elementos visuais indígenas em jogos. Porém, esse processo exige muito mais do que estética: requer escuta, respeito e compromisso com a verdade simbólica das culturas envolvidas.
Entre os povos Guarani, que abrangem subgrupos como Mbya, Kaiowá e Ñandeva, os símbolos são expressões vivas de mitos, territórios e relações espirituais. Utilizá-los em jogos sem compreender seu significado ou sem consultar as comunidades pode gerar distorções graves. Este conteúdo se dedica a mostrar caminhos práticos, sensíveis e culturalmente legítimos para ilustradores, designers e educadores que desejam incluir símbolos Guarani em jogos de forma respeitosa e autêntica.

Por que os símbolos Guarani não são meros enfeites
Diferentemente de ícones gráficos padronizados, os símbolos Guarani surgem de uma rede de significados complexos, muitas vezes transmitidos oralmente e relacionados a cantos sagrados, sonhos e narrativas de criação. Eles podem representar entidades espirituais, ciclos da natureza, clãs familiares, funções cerimoniais e até sentimentos ancestrais.
Utilizar um símbolo fora de contexto ou com outro significado não é apenas uma imprecisão visual. Pode representar um desrespeito à espiritualidade de um povo. Por isso, mais do que buscar imagens bonitas, é preciso ouvir histórias, entender os ciclos e consultar as fontes certas.
Onde os símbolos costumam aparecer em jogos
Nos jogos que integram cultura Guarani, os símbolos podem surgir em diversas partes:
Tabuleiro ou cenário: marcas territoriais, mapas circulares, rios sagrados;
Cartas ou peças: ícones de animais míticos, frutas sagradas, caminhos espirituais;
Fichas e marcadores: sementes com desenhos, palhas trançadas, elementos de sonho;
Embalagens ou regras do jogo: ilustrações que contam a origem do jogo.
O cuidado começa na escolha do que será representado, mas precisa continuar até a forma como será desenhado, colorido e descrito.
Como iniciar uma pesquisa legítima
Antes de qualquer tentativa de ilustração, é necessário realizar uma pesquisa contextual e participativa. Não basta buscar referências visuais em bancos de imagens ou em redes sociais. A legitimidade nasce do contato direto com a comunidade ou com fontes reconhecidas por ela.
1. Identifique o território Guarani relacionado
Os Guarani estão presentes em diversos estados do Brasil (como Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo) e também no Paraguai e Argentina. Cada região pode ter variações nos símbolos usados, no vocabulário e no significado espiritual. Por isso:
Descubra a origem do jogo ou da história que você quer ilustrar;
Localize a aldeia ou grupo mais próximo que utiliza esses símbolos;
Nunca generalize os Guarani como um único povo homogêneo.
2. Busque interlocutores legítimos
É fundamental conversar com pessoas que representem a comunidade e tenham autorização cultural para compartilhar saberes. Isso pode incluir:
Caciques e líderes espirituais;
Professores indígenas;
Artesãos e anciãos reconhecidos.
Evite intermediários externos sempre que possível. E esteja preparado para ouvir um “não” como resposta. O silêncio ou a recusa também são formas legítimas de proteção cultural.
3. Registre com ética (e consentimento)
Se for documentar símbolos por meio de foto, vídeo ou desenho durante visitas, sempre:
Peça permissão formal e informal;
Explique claramente a finalidade;
Mostre como será usado e em que contexto;
Ofereça retorno: compartilhar o jogo depois, ou imprimir e doar materiais ilustrados.
Passo a passo para ilustrar com respeito
Com a base ética estabelecida, é hora de seguir um fluxo de criação cuidadoso e consciente. A seguir, um roteiro prático dividido em etapas fundamentais.
Etapa 1: Escuta do símbolo
Reúna-se com membros da comunidade e pergunte sobre os símbolos mais importantes;
Deixe que contem histórias, cantem ou desenhem à mão livre;
Evite interromper com perguntas técnicas — ouça primeiro, compreenda depois.
Etapa 2: Registro textual e visual
Faça anotações sobre o que representa cada traço, cor ou forma;
Pergunte se o símbolo é aberto (pode ser compartilhado publicamente) ou fechado (uso restrito);
Anote se ele está ligado a um tempo ritual específico (por exemplo, só usado no Toré, no Nhemongarai ou na pesca coletiva).
Etapa 3: Esboço interpretativo
Com base no que ouviu, esboce à mão algumas versões respeitosas;
Não tente “embelezar” ou “ocidentalizar” as formas;
Compartilhe o esboço com a comunidade antes de seguir para a arte final.
Etapa 4: Escolha de cores
Consulte sobre o uso de cores: muitas vezes, elas não são decorativas, mas têm valor espiritual;
Vermelho com urucum, preto com jenipapo, branco com argila — cada cor pode evocar fases da vida, elementos da mata ou do céu;
Respeite combinações tradicionais.
Etapa 5: Feedback e aprovação comunitária
Volte à aldeia (ou ao grupo consultado) e apresente o que foi feito;
Escute as sugestões, críticas e correções com humildade;
Só siga adiante com a arte final depois de um consentimento claro e coletivo.
Cuidados éticos essenciais
A ilustração de símbolos Guarani em jogos deve seguir alguns princípios fundamentais que garantem respeito, reciprocidade e preservação cultural:
Nada de apropriação: se você pretende comercializar o jogo, a comunidade deve participar dos lucros ou da definição de uso;
Credite a origem: nomeie a aldeia, a pessoa que compartilhou o símbolo, e os significados originais;
Evite sincretismo forçado: não misture símbolos Guarani com elementos de outras culturas ou religiões de forma superficial;
Não transforme símbolos em “logomarcas”: isso esvazia o sentido original e mercantiliza o sagrado.
Exemplos reais e inspiradores
Alguns projetos já conseguiram integrar símbolos Guarani em jogos de maneira cuidadosa e admirável. Veja dois casos:
“Kuaray’i — O Caminho do Pequeno Sol”
Criado em parceria com a comunidade Mbya do litoral sul do Brasil, este jogo infantil usou símbolos desenhados pelas próprias crianças da aldeia. Os caminhos no tabuleiro seguem padrões de tecelagem tradicional, e os jogadores carregam pequenos bastões com cores de plantas locais.
“Nhemongarai — O Jogo da Primeira Palavra”
Desenvolvido por professores indígenas Guarani-Kaiowá, este jogo representa a cerimônia de iniciação das crianças. Cada carta traz símbolos ligados à fala, ao canto e ao silêncio ritual. O jogo foi aprovado pelo conselho de anciãos antes de ser impresso.
O jogo como ponte entre mundos
Quando um símbolo Guarani é colocado com respeito em um componente de jogo, ele não serve apenas como ilustração. Ele atua como ponte entre mundos: entre o tempo mítico e o tempo lúdico, entre o território e a imaginação, entre o gesto ancestral e a inovação cultural.
Mais do que criar jogos com “temática indígena”, o desafio e a beleza estão em criar jogos com presença indígena viva. Isso só se torna possível quando os símbolos são tratados como sementes de memória e não como ornamentos vazios.
Que o traço seja também escuta
Ao terminar uma ilustração de componente de jogo com símbolos Guarani, pergunte-se:
Este símbolo foi escutado ou apenas observado?
Ele carrega consigo uma história verdadeira ou uma invenção apressada?
Minha arte devolve algo à comunidade de onde veio?
Se as respostas forem honestas e respeitosas, seu trabalho deixará de ser apenas imagem para se tornar também diálogo. E talvez, com sorte, ele mesmo se transforme em jogo no sentido mais profundo da palavra: aquele que brinca entre os mundos, que atravessa tempos, e que liga mãos, olhos e corações.
Que cada traço que você desenhar seja um convite ao cuidado. Porque quando a arte escuta, o símbolo fala. E o jogo, enfim, floresce.





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