Sucesso Com Contagem Ancestral Guarani Em Sala de Aula
- Michele Duarte Vieira
- 22 de jul.
- 5 min de leitura
Valorizar os saberes indígenas em contextos educativos tem se mostrado um caminho poderoso para transformar a aprendizagem e reverter processos históricos de apagamento cultural. Entre essas práticas, a contagem ancestral Guarani vem se destacando como uma ponte entre o mundo tradicional e os currículos formais. Ao incorporar essa forma originária de numerar, os educadores não apenas respeitam a cosmovisão dos povos originários, como também promovem uma alfabetização matemática mais significativa, crítica e contextualizada.
Neste conteúdo, você conhecerá experiências reais que demonstram como a contagem Guarani pode gerar impacto positivo no rendimento, na identidade e no engajamento dos estudantes.

A contagem ancestral Guarani: mais do que números
A estrutura numérica Guarani é profundamente simbólica. Ao contrário do sistema decimal ocidental, a contagem Guarani não separa números de contextos espirituais ou naturais. Cada número carrega uma ligação com elementos da natureza, com o corpo, com o tempo cíclico e com a oralidade ancestral. Termos como peteĩ (1), mokõi (2), mbohapy (3), irundy (4), po (5), entre outros, não são meras traduções de unidades, mas expressões de uma visão integrada de mundo.
Por isso, ensinar a contagem Guarani não é apenas apresentar palavras em outra língua: é reconstruir com os alunos um jeito de pensar a matemática com raízes culturais profundas.
Por que inserir a contagem Guarani nas escolas?
Diversas escolas em territórios com presença Guarani têm buscado inserir a contagem ancestral como parte de um processo de revitalização cultural. No entanto, mesmo em contextos urbanos ou em escolas não-indígenas, a prática tem ganhado espaço como ferramenta antirracista e decolonial.
Entre os motivos que justificam essa inserção, destacam-se:
Fortalecimento da identidade dos estudantes Guarani;
Reconhecimento de saberes tradicionais como ciência legítima;
Ampliação das formas de pensar a matemática, favorecendo alunos com diferentes modos de aprendizagem;
Redução da evasão escolar, especialmente nas séries iniciais;
Criação de pontes entre língua materna e português, favorecendo o bilinguismo autêntico.
A seguir, serão apresentados três estudos de caso que evidenciam o sucesso dessa prática em diferentes contextos escolares.
Caso 1: Escola Estadual Teko Porã – Território Mbya, RS
Contexto
Localizada em uma aldeia Mbya Guarani no Rio Grande do Sul, a Escola Estadual Teko Porã adotou em 2021 um projeto transversal chamado "Contando com Nhanderu", voltado para ensinar a contagem tradicional Guarani desde a educação infantil até o 5º ano.
Estratégia pedagógica
A metodologia partiu de jogos cantados, rodas de história, coleta de sementes e mapeamentos corporais. Os alunos aprenderam os números por meio de cantigas ancestrais, como:
“Peteĩ, mokõi, mbohapy – avaxi ryrupe peteĩ’i”(Um, dois, três – no cesto de banana, uma sementinha)
Além disso, as professoras da aldeia desenvolveram material concreto usando sementes, pedras pintadas, palitos de bambu e painéis de grafismo.
As avaliações eram feitas por observação e registros orais, com ênfase na participação ativa, repetição espontânea dos números e capacidade de usar a contagem em contextos reais da comunidade, como partilha de alimentos, medição de tempo e confecção de artesanato.
Resultados
A proficiência matemática dos alunos do 1º ao 3º ano subiu 35% em relação ao ano anterior;
Os alunos Guarani demonstraram maior segurança para se expressar em sua língua materna;
A autoestima cultural foi identificada como ponto-chave de engajamento;
Professores não-indígenas passaram a adotar o vocabulário Guarani em sala como parte de uma prática de respeito e escuta.
Caso 2: Escola Municipal Vila Esperança – Periferia de São Paulo
Contexto
Com uma população composta majoritariamente por migrantes nordestinos e uma pequena presença de famílias Guarani, a escola de ensino fundamental Vila Esperança decidiu incluir a contagem Guarani em seu projeto anual “Matemática para além dos números”.
Estratégia pedagógica
A iniciativa surgiu da leitura de um livro paradidático sobre saberes indígenas. Inspirados por ele, os professores desenvolveram um módulo intitulado “Números que dançam”, no qual a contagem era ensinada com movimentos corporais, sons da natureza e desenhos.
A interdisciplinaridade foi central: os professores de artes, educação física e ciências participaram ativamente. Os números foram incorporados em coreografias e jogos de tabuleiro desenhados pelos próprios alunos.
Ao final do semestre, as turmas do 2º ao 4º ano apresentaram um festival chamado "Matemática com alma", com exposições de objetos, apresentações orais e danças de contagem com pintura corporal simbólica.
Resultados
Houve melhora de 27% no desempenho em atividades de sequenciamento numérico;
Estudantes com dificuldade em matemática se destacaram por meio das atividades lúdicas e artísticas;
A prática de reconhecer a contagem Guarani como legítima gerou debates sobre racismo, invisibilização indígena e formas plurais de aprender;
Um aluno Guarani foi convidado a ensinar sua forma de contar para os colegas, protagonizando o processo de ensino.
Caso 3: Escola Intercultural Yvy Poty – Mato Grosso do Sul
Contexto
Fundada como escola bilíngue, a Yvy Poty possui professores Guarani-Kaiowá e currículo intercultural. A contagem tradicional está presente desde o maternal, mas um novo projeto, “Número é caminho”, potencializou ainda mais os resultados.
Estratégia pedagógica
O projeto apostou em trilhas de aprendizagem. As crianças caminhavam em circuitos ao ar livre onde os números Guarani estavam pintados em pedras e troncos. Cada parada representava um aprendizado: contagem, agrupamento, multiplicação, conceitos de paridade e até noções de geometria.
Os educadores criaram “diários de contagem”, nos quais as crianças registravam não só os números aprendidos, mas suas sensações, histórias familiares ligadas àqueles números e desenhos espontâneos.
O projeto também envolveu avôs e avós da comunidade, que contavam histórias nas quais os números apareciam como ensinamentos espirituais.
Resultados
A taxa de letramento matemático no 3º ano subiu 41% em um ano;
O interesse dos alunos pelas aulas de matemática aumentou visivelmente, segundo observações sistemáticas feitas por pedagogos;
As famílias passaram a participar mais da escola, reconhecendo nela um espaço de valorização dos saberes tradicionais;
A escola recebeu reconhecimento nacional por boas práticas em educação indígena.
Passo a passo para implementar a contagem Guarani na sua escola
Mesmo escolas não-indígenas ou sem presença significativa de estudantes Guarani podem se beneficiar da inclusão dessa prática. A seguir, um roteiro sugerido para dar os primeiros passos:
1. Estudo formativo da equipe docente
Promova encontros formativos sobre a contagem Guarani, sua simbologia, sonoridade e origem. Convide mestres indígenas ou utilize materiais produzidos por eles;
2. Elaboração de material concreto
Crie ou solicite objetos pedagógicos que representem os números com elementos naturais, como sementes, pedras, folhas, argila e pintura corporal;
3. Integração com outras áreas
Associe a contagem Guarani a práticas de música, dança, artes visuais, geografia do território e contação de histórias;
4. Valorização da oralidade
Priorize o uso da oralidade como forma legítima de expressão matemática. Cante, conte, repita, jogue. Deixe o número ganhar corpo e voz;
5. Construção coletiva do vocabulário
Monte murais visuais com a contagem Guarani, permitindo que os próprios alunos desenhem ou associem os números a experiências próprias;
6. Avaliação sensível e contextualizada
Abandone provas tradicionais e registre por meio de diários de campo, vídeos, desenhos e falas dos alunos sua progressão.
Quando a matemática pulsa com o coração do povo
Em um tempo em que a educação busca se reconectar com a humanidade e os saberes diversos do planeta, a contagem ancestral Guarani surge como uma forma potente de ensinar e de aprender. Quando os números deixam de ser abstrações e voltam a ser palavras vivas, entoadas com o som do vento e com o corpo em movimento, a escola se transforma. A aprendizagem deixa de ser apenas técnica e torna-se também afetiva, relacional, identitária.
Estes estudos de caso não são apenas exemplos isolados. Eles são pistas de um futuro possível: um futuro onde cada criança, Guarani ou não, possa contar o mundo a partir da sua raiz. E nesse futuro, o saber tradicional não é exceção, é base, é ponte, é floresta. E quem aprende a contar com o coração da mata, jamais se perde no caminho.
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