top of page

Transformando Cerâmica Guarani em Tabuleiros: Estética Ancestral

  • Foto do escritor: Michele Duarte Vieira
    Michele Duarte Vieira
  • 15 de jul.
  • 5 min de leitura

A cerâmica em tabuleiros Guarani é mais do que objeto utilitário ou decorativo. Ela é um mapa simbólico de mundos invisíveis, uma expressão viva da cosmovisão de um povo que transforma barro em memória e desenho em narrativa espiritual. Ao observar atentamente os traços sinuosos, os padrões circulares e as simetrias cuidadosamente repetidas, não estamos apenas diante de arte, mas de linguagem. Essa linguagem visual pode ser transposta, respeitosamente, para novas superfícies. Uma delas, inusitada e poderosa, são os tabuleiros de jogos: territórios de estratégia, encontro e criatividade.


Explorar a fusão entre arte ancestral Guarani e o universo dos jogos de tabuleiro é abrir caminho para uma estética que convida à contemplação e à escuta. Trata-se de um gesto de tradução, não de apropriação, uma forma de gerar diálogos entre gerações e contextos culturais distintos, sem romper os fios que ligam os saberes originários à sua origem espiritual.

cerâmica Guarani

A Potência Simbólica da Cerâmica Guarani


O barro como corpo do mundo

Na tradição Guarani, a cerâmica nasce do contato entre o corpo e a terra. Mulheres ceramistas moldam o barro vermelho extraído dos arredores da aldeia, misturando-o com cinza de madeira para aumentar a resistência e a porosidade. O que poderia ser apenas um recipiente, ganha alma a partir da pintura ritual, feita com pigmentos vegetais e minerais. Os grafismos registrados nessas peças não são meramente decorativos: carregam sentidos cosmológicos, invocações de proteção, movimentos do tempo, narrativas de origem.


As peças mais comuns incluem potes (yvyrá), cuias, pratos e urnas funerárias. Muitas vezes, esses objetos acompanham rituais de cura, partilha de alimentos sagrados como o mingu ou o ka’á (erva-mate), e cerimônias espirituais como o Nhemongarai, rito de passagem infantil. É nesse contexto que os traços se tornam transmissões visuais de um mundo onde o visível e o invisível caminham lado a lado.


Os padrões mais recorrentes

As formas geométricas que aparecem na cerâmica Guarani são compostas por espirais, losangos, linhas quebradas, cruzes simétricas e elementos que evocam olhos, caminhos e ciclos. Entre os grafismos mais significativos, podemos destacar:

  • Mbopi’i: padrão de losangos intercalados que simboliza equilíbrio entre forças opostas;

  • Kuaray Rendy: raios solares estilizados, geralmente dispostos em torno de um círculo central;

  • Ava Yvy: caminhos entrelaçados que remetem ao deslocamento dos espíritos e às trilhas da floresta;

  • Ñee reta: marcas onduladas associadas à fala sagrada e às vozes ancestrais.


Cada comunidade pode desenvolver variações desses motivos com base em experiências locais, sonhos coletivos e ensinamentos dos anciãos.


Por Que Trazer Essa Estética Para os Tabuleiros?


Um novo território para narrativas visuais

Os tabuleiros de jogo são superfícies interativas. Ao contrário de um quadro ou uma estampa de camiseta, o tabuleiro está em constante movimento: peças deslizam, caminhos se cruzam, objetivos se formam. Isso cria um campo fértil para inserir símbolos que ganham vida a cada jogada.


Quando integramos grafismos Guarani ao layout de um jogo, criamos mais do que um “design bonito”: geramos contexto. Cada partida pode se tornar um convite à descoberta de histórias, à reflexão sobre dualidades, ciclos e equilíbrio, temas centrais na cosmologia Guarani.


Aproximação lúdica entre culturas

Utilizar estampas inspiradas na cerâmica Guarani em jogos de tabuleiro é também uma oportunidade educativa. Escolas indígenas e não indígenas podem, juntas, experimentar formas lúdicas de entrar em contato com esse universo simbólico. Crianças e adultos se tornam intérpretes ativos da arte, não apenas espectadores.


Além disso, em projetos de economia criativa, a criação colaborativa de tabuleiros pode fortalecer a renda de artesãs Guarani, valorizar seus saberes e posicionar sua arte no mercado sem perder sua integridade espiritual.


Etapas para Transformar Cerâmica Guarani em Estampas para Tabuleiros


1. Escolher peças autênticas como ponto de partida

Antes de qualquer transposição estética, é fundamental partir de registros legítimos. Isso significa visitar aldeias com permissão e participação dos mestres ceramistas, coletar imagens de peças originais (com autorização), ouvir as histórias por trás dos grafismos e entender seus significados. Fotografias, cadernos de campo e gravações podem ser ferramentas de apoio nesse processo.


Evite usar reproduções fora de contexto ou imagens de museu sem vínculo comunitário. A origem e o respeito são o primeiro passo.


2. Dialogar com as artistas e cocriar

Nada substitui a escuta direta. Proponha um processo colaborativo com artesãs Guarani: convide-as para participar da concepção do jogo, do desenho dos grafismos e até mesmo da escolha das cores e regras. Elas não são fonte de inspiração: são cocriadoras.


Esse gesto evita exotizações e cria pontes genuínas. Muitas artistas já estão abertas a trabalhar com design contemporâneo, o que falta, muitas vezes, é o canal justo e ético para essa parceria.


3. Digitalizar os grafismos com sensibilidade

Depois de coletar os desenhos (fotografados ou escaneados com alta resolução), o próximo passo é a vetorização. Use softwares como Adobe Illustrator, Inkscape ou Affinity Designer para converter os traços em formas limpas e reutilizáveis, mas sem retirar sua organicidade. Evite “corrigir” imperfeições que fazem parte da estética viva da cerâmica.


Opte por manter as proporções originais dos traços, preserve o ritmo dos padrões e considere aplicar texturas que simulem a granulação do barro ou a pincelada vegetal.


4. Escolher o formato do jogo

Antes de definir como aplicar os grafismos, pense no tipo de tabuleiro. Alguns formatos possíveis:

  • Jogo de trilha (como Ludo ou Senet): ideal para inserir caminhos inspirados no Ava Yvy;

  • Jogo de territórios (como Go ou War): possibilita representar diferentes tekoha (territórios tradicionais Guarani);

  • Jogo de memória visual: permite explorar padrões que se repetem em espelhos ou rotações;

  • Jogo cooperativo de construção de mundo: ideal para ativar a lógica de equilíbrio entre forças, inspiração no Mbopi’i.


Essa escolha definirá a composição visual do tabuleiro e o papel dos grafismos na dinâmica do jogo.


5. Compor a estampa

Com os vetores prontos, é hora de montar a estampa do tabuleiro. Pense em camadas:

  • Base do tabuleiro: aplique padrões de fundo inspirados em cerâmica (tonalidades terrosas, marrons, vermelhos queimados);

  • Trilhas ou divisões: use grafismos para delinear caminhos, bordas, casas ou zonas do jogo;

  • Cantos e centros: reserve espaços simbólicos para figuras circulares ou radiais, evocando o sol, os olhos ou os ciclos.


Mantenha sempre legibilidade e funcionalidade. O tabuleiro precisa ser jogável, os símbolos não devem confundir o percurso, mas sim guiar e enriquecer.


6. Escolher a paleta cromática

A cerâmica Guarani tradicional trabalha com contrastes de vermelho, preto, branco e marrom. Ao transpor para o jogo, essa paleta pode ser respeitada ou reinterpretada com tons inspirados na floresta e nos pigmentos vegetais:

  • Argila queimada: fundo base;

  • Jenipapo (preto-azulado): linhas fortes;

  • Urucum (vermelho): destaques e contornos;

  • Tinta de casca de angico: bege-amarelado para harmonia visual.


A harmonia das cores também pode seguir a lógica de equilíbrio dual: luz e sombra, quente e frio, seco e molhado.


Quando o jogo vira canto visual

Há algo profundamente poético em imaginar que, ao mover peças sobre um tabuleiro decorado com grafismos Guarani, alguém esteja refazendo os caminhos da floresta, os traços deixados por espíritos ancestrais ou os ciclos do sol sobre a terra. A cerâmica, que antes habitava cozinhas, rituais e cemitérios, agora ganha novo fôlego em espaços de brincadeira e imaginação.


Esse gesto precisa ser feito com escuta. Tabuleiros não são vitrines para decorar com arte indígena. Eles devem se tornar superfícies de respeito, onde cada símbolo pulsa com a energia da oralidade ancestral. Jogos que nascem dessa escuta não são apenas divertidos, eles são portais.


Ao transformar cerâmica Guarani em estampa de tabuleiro, não estamos apenas ressignificando o design. Estamos criando pontes entre mundos, entre tempos, entre saberes. E é nessa travessia que a estética deixa de ser apenas forma, e se transforma em gesto vivo de reverência e reinvenção.


Se você sente o chamado para trilhar esse caminho, comece com humildade. Aproxime-se das ceramistas Guarani com o coração aberto, reconheça a sacralidade de seus traços, e permita que o jogo que você cria seja, acima de tudo, um convite ao encantamento. Porque jogar, nesse contexto, é mais do que disputar: é aprender a ver com outros olhos, os olhos do barro, da floresta e do tempo que não se mede em horas, mas em histórias.

Comentários


bottom of page